"A história do Shelby feito para derrotar a Ferrari nos anos 60".
No começo dos anos 60 Carroll Shelby retornou de uma triunfal conquista na Europa. Pilotando para David Brown e para a Aston Martin o criador de galinhas do Texas venceu Le Mans. Nenhum americano desde o general Patton havia sido tão dominante nas estradas europeias. Levaria décadas até que outro texano chamado Lance Armstrong conseguisse algo parecido. Contudo, Shelby escondeu um segredo: ele tinha o coração fraco e foi obrigado a se aposentar do desporto que adorava e praticava brilhantemente. Ele perdeu tempo trabalhando com pneus e abrindo uma escola de pilotagem, e seu pobre coração não estava feliz com isso. Ele precisava voltar às corridas.
Lá vem o Cobra!
Shelby queria construir um carro de corridas, e a sua temporada na Europa convenceu-o da superioridade das características de dirigibilidade dos pequenos roadsters britânicos. Ele entrou em contacto com a AC Cars em Thames Ditton para saber se seria viável colocar um V8 num AC Ace. E assim aconteceu. A AC vinha utilizando um motor seis em linha de projecto anterior à Segunda Guerra. Em 1961, mesmo o mais novo motor da AC era um dinossauro, e seria aposentado em favor do motor seis em linha do Ford Zephyr. Por ironia do destino as modificações necessárias para instalar o motor do Zephyr no chassis do AC permitiram que um V8 fosse instalado da mesma forma. Agora Shelby só precisava de um motor.
Shelby-Ford AC Cobra MkII
Primeiro ele foi à Chevrolet e eles disseram "não", afinal, outro desportivo possante ameaçaria a supremacia do Corvette. Então Shelby procurou Lee Iacocca, da Ford, para procurar um coração americano para seu carro britânico. Iacocca achou engraçado aquele texano que sempre aparecia no escritório com um enorme chapéu e uma bela loira. Mas depois o presidente da Ford percebeu que Shelby era sério. Há dois factos importantes que precisam ser notados aqui. O primeiro é que Iacocca ainda não havia idealizado o Mustang.
O segundo é que a Ford queria desesperadamente bater a Chevrolet no jogo dos desportivos (tanto que Henry Ford II estava negociando com Enzo a compra da Ferrari). A Ford Motor Company havia recém desenvolvido um V8 leve, de alumínio, para as pick-ups canadianas. Este motor, produzido inicialmente na cidade dos melhores clubes de strip, Windsor, tornar-se-ia conhecido como Windsor V8. A versão que Shelby usou pela primeira vez para o Cobra MkI foi a de 4,2 litros. Perfeito.
Ou não. O primeiro teste destruiu o eixo traseiro. Um eixo Salisbury 4HU (com freios “inboard”) foi trazido do Jaguar E-Type, mas o calor dos freios derreteu os anéis de vedação do eixo. Então eles foram para o cubo de roda. Shelby também gastou um bom tempo pensando numa forma de arrefecer o motor apertado no cofre, apelando até para radiadores de Corvette. E, assim como o Corvette, uma enorme montanha de torque num pacote tão leve pedia o uso de feixes de mola transversais. Este, junto dos novos braços mais largos, forçaram a AC a modificar a carroçaria alargando radicalmente os guarda-lamas.
Shelby-Ford AC Cobra MkIII
Os resultados foram épicos. O V8 Ford foi quase totalmente refeito para gerar 325 cv e catapultar o Shelby-Ford AC Cobra MkI a 100 km/h em 4,2 segundos, algo jamais visto até então. As primeiras unidades produzidas tiveram a potência levemente reduzida e também uma direcção fraca (devido ao sistema de rosca sem fim da coluna do Fusca) e mais problemas de refrigeração. Shelby resolveu isso com um motor 289 (4,7 litros), novo câmbio, sistema de direcção com cremalheira e pinhão e grade dianteira aumentada com respiros laterais para tirar o ar quente do cofre do motor. Agora era hora de colocá-lo na pista.
"Cada vez que eu via um carro vermelho chegando, pensava ‘merda. Agora eles vão nos apanhar’" – Bob Bondurant
O Cobra provou ser dominante nos circuitos americanos. Em 1963 dois deles terminaram em primeiro e segundo em Riverside, à frente de seus rivais Corvette Sting Ray. Na verdade o número de corridas vencidas por Shelby Cobras é enlouquecedor. Há uma certeza: se houve uma corrida no território dos EUA em 1963 e 1964, ela foi vencida por um Shelby Cobra, incluindo as 12 Horas de Sebring. Contudo, não tiveram a mesma sorte na Europa.
Em 1963 Shelby inscreveu uma dupla de Cobras na categoria GT de Le Mans. Esses carros tinham capotas rígidas afixadas para ajudá-los a lidar melhor com os longos traçados e as altas velocidades dos circuitos europeus. Um dos carros conseguiu chegar em sétimo lugar.
A Ferrari ocupou da primeira até a sexta posição. Naturalmente isso não agradou Shelby.
Um facto pouco conhecido é que ele tinha uma birra pessoal com a Ferrari. Parece que num momento da temporada europeia de Shelby a Ferrari depreciou o texano. Mais precisamente ao não oferecer-lhe o cargo de piloto.
Shelby sabia o que tinha que fazer. Reiterando: nos curtos circuitos americanos, os Cobras eram imbatíveis. Eles chegavam mais rápido à velocidade máxima que seus concorrentes (incluindo os Ferrari GTO) e tinham um óptimo comportamento dinâmico. O que realmente acabava com os Cobras em Le Mans era a notável recta Mulsanne. Mesmo com o tecto rígido instalado os Cobras não passavam de 240 km/h. Os Ferrari? 288 km/h. Obviamente isso era um obstáculo intransponível. A menos que Shelby tivesse outro carro. Talvez um coupé? E aqui aparece a lenda!
Pete Brock e a traseira Kamm
"Sabíamos, mais ou menos, quão capazes os Ferrari eram e sabíamos que iríamos vencê-los. Eu sabia disso, se eu pudesse usar o Daytona Coupé, a Ferrari não teria chance." –Carroll Shelby
Carroll Shelby encarregou o projecto da carroçaria do novo carro a Peter Brock, um jovem de apenas 23 anos. Brock colocou o piloto Ken Miles num banco segurando um volante e então começou a construir o carro ao redor dele usando inicialmente fita ("silvertape") e madeira. A carroçaria seria feita pela italiana Carrozzeria Gran Sport em alumínio. O resultado foi o visual deselegante (para alguns) do Daytona Coupé. O jovem Brock havia seguido uma teoria de um aerodinamista alemão chamado Kamm da década de 30. Dizia que para alcançar a forma mais aerodinâmica possível seria preciso criar uma traseira virtual. A carroçaria precisava de começar a inchar (como o formato de gota de um Talbot Lago) e então subitamente fazia-se um corte. Voilà, uma traseira tipo Kamm!
Shelby não estava tão confiante e chegou ao ponto de trazer um especialista em aerodinâmica para avaliar as linhas de Brock. Não. O coupé teria uma aerodinâmica melhor com uma traseira mais longa e afilada. Mas Shelby decidiu ouvir seu jovem pupilo e aprovou o controverso coupé.
Enquanto testavam o Coupé, Jack Sears e Peter Bolton atingiram 296 km/h numa rodovia durante os preparativos de Le Mans. Nas 12 Horas de Daytona de 1964 o Coupe liderou a prova até danificarem um diferencial. Um novo diferencial foi logo instalado. Ainda assim o Cobra Coupe foi tão dominante que, além de bater o recorde de volta mais rápida, acabou ganhando o nome de Daytona. Le Mans seria a próxima.
Uma vez em França, mais exactamente na recta Mulsanne, os Daytonas atingiram 313 km/h de velocidade máxima. Isso não somente arrombou as portas da competição, como também permitiu que os carros de Shelby corressem na categoria de protótipos. O Daytona pilotado por Dan Gurney e Bob Bondurant terminou em primeiro na categoria GT e quarto no geral. Na verdade o Daytona Coupe chegou a dar uma volta de avanço ao Ferrari GTO. Nada mal para um carro construído num depósito em Santa Monica por meia dúzia de carolas.
Embora o Daytona tenha dominado as temporadas de 1964 e 1965 da classe GT, infelizmente o seu destino já estava traçado. Em 1964, o ano em que ele venceu Le Mans, a volta mais rápida havia sido feita por outro americano pilotando outro Ford: o papão Ford GT40. Phil Hill manteve a média de 209 km/h até que ele e seu carro abandonaram com problemas na caixa de velocidades. No ano seguinte Henry Ford II levou boa parte dos melhores engenheiros (Shelby estava envolvido com o GT40 desde o começo) e os esforços do Cobra nas pistas foram tomados pelo trovão GT40. Os seis Daytona Coupes voltaram (ilegalmente) para Los Angeles. Shelby nem sequer conseguiu vendê-los uma vez que estava totalmente desinteressado. O mais chocante é que ele finalmente livrou-se dos Daytona’s por cerca de 5.000 dólares cada.
O maior achado do mundo
Houve um reconhecimento, contudo. É verdade que todos os seis carros voltaram da Inglaterra para os EUA, mas até 2001 somente cinco eram conhecidos. O sexto carro? Ninguém sabia. Até que uma mulher chamada Donna O’Hara suicidou-se ateando fogo ao seu próprio corpo. No seu anexo, trancado, estava o sexto carro, chamado CSX2287, que o seu pai havia comprado há anos e deixado para ela. Sem dúvida alguma, o maior achado da história das colecções de carros, com valor estimado em mais de 4.000.000 de dólares. Nada mau para um investimento inicial de cinco contos.
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